confeitaria do diabo
existe um aglomerado de espinhas insistentes bem no meio do meu peito e eu me lembro da época que fazia acupuntura. dr. Gustavo, um homem compacto de olhos pequenos e brilhantes e sempre muito gentil, explicava como os pontos na superfície da nossa pele estavam conectados aos nossos órgãos e nossas emoções. ele aplicava as agulhas de maneira quase imperceptível e depois eu ficava deitada no escuro por um bom tempo, ouvindo música clássica - admito que várias vezes eu cochilava. era o final da minha adolecencia e eu tinha muito refluxo e náuseas, psicossomáticos causados pela minha relação com a faculdade. na época, as espinhas ficavam bem no meio da minha barriga, acima do umbigo, onde nós somos "costurados" dentro do útero. a experiência da acupuntura e muitos anos praticando yoga confirmam que a acne recorrente bem no chakra do meu coração não e nada mais que meu corpo me dizendo que essa ferida emocional é muito real.
hoje não tem mais acupuntura ou yoga ou tempo para relaxar ouvindo música clássica, e meu problema não é mais a faculdade, apesar de ainda não saber o que quero fazer da minha vida. é um misto de frustração e tristeza, estar na flor da idade e presa numa rotina vazia de tarefas mundanas - a mente vazia realmente é a oficina do diabo. é também uma situação vulnerável, uma comorbidade - quando sua vida é vazia de sentido, qualquer dificuldade já é o bastante para te derrubar. é como dirigir um carro velho sem air bag, sem cinto de segurança, ou como vagar num campo aberto durante uma tempestade de raio.
e assim as questões da vida vão caindo sobre mim num jogo de tetris onde nada se encaixa, as peças vão se acumulando enquanto eu viro uma panqueca. é a receita perfeita para chegar ao fundo do poço: o desemprego é a massa do bolo, uma situação desagradável, mas que acomete grande parte da população; o coração partido é o recheio, algo com o qual já estou acostumada, mas que sempre demoro pra me recuperar; e para finalizar, a cobertura é a iminente morte da minha avó, com o sentimento de luto finalmente debutando na minha mente, como se eu precisasse mais disso. temos, então, um perfeito bolo de desgraça.
todo dia sou servida os pedaços desse bolo pouco a pouco, em todas as refeições, e ele parece nunca ter fim. eu já estou ficando enjoada, já não aguento mais, mas não tem para onde fugir. e a ferida do meu coração não parece nunca melhorar ou fechar, ela ainda pulsa vermelha, ela infecciona e paralisa todo meu corpo e minha mente, consumindo toda minha energia, que já era escassa.
nada mais pode ser feito, as coisas não estão somente fora do meu controle, dessa vez elas parecem estar vindo diretamente contra mim. e eu não tenho como me defender ou para onde fugir, só posso fechar os olhos e aguentar, rezando para que acabe logo.