adeus, meu travesseiro
minha avó era uma senhora gorda e eu era uma criança magrela, de joelhos pontudos e costelas aparentes. eu sentava em seu colo e a abraçava e apertava, ela dizia " você está me furando com seus ossos!" e eu falava "vó, você é meu travesseiro fofinho...". agora sem meu travesseiro, o mundo está duro e frio, e não há nada para amortecer o impacto da realidade.
nada poderia me preparar para a sensação avassaladora de entrar na casa dela, vazia, sabendo que ela nunca mais vai estar lá de novo. a xícara dela não vai mais estar suja na pia com sua mistura de café e leite em pó; não vou mais ouvir seus passos arrastados pelo corredor; não vou mais levar bronca dela quando fizer uma nova tatuagem; não haverá ninguém capaz de alimentar as rolinhas do jeito "certo", e os beija-flores não ficarão mais diabéticos com sua água extremamente açucarada; o que será de todas suas plantas, que ela cuidava com tanto amor? e o que será de nossos domingos?
sentei na cama no quarto minúsculo e escuro, o barulho do ventilador ainda era o mesmo, a sensação da colcha na minha pele era a mesma, as paredes e o teto - os mesmos. poderia por uma fração de segundo fingir que era ano passado, ou o anterior, ou o ano antes desse; poderia muito facilmente se passar por um momento em um daqueles meses intermináveis de pandemia que eu morei com ela. mas não era, havia algo que não passava despercebido, a ausência da minha avó era tão marcante quanto sua presença.
quando fecho os olhos me lembro vividamente das manhãs que eu acordava e ia pro estágio, ela sentava comigo na mesa enquanto eu mastigava um pão com manteiga, sonolenta. me lembro da sua figura contra a luz da porta, com o braço apoiado na mesa e mão no rosto, os olhos verdes distraídos. me lembro de uma noite específica que cheguei da faculdade cansada e estressada e ela havia feito bolinho de chuva, do seu jeito de demonstrar afeto através da sua comida maravilhosa. me lembro de sua alegria na minha formatura - me desmontou por inteiro quando vi o pequeno álbum com minhas fotos de beca pousado em sua mesinha perto da cama, mesma mesa onde estavam seus remédios, pomadas, livros de oração, onde ela havia passado maior parte dos dias antes de ir para o hospital.
tenho certeza de que são memórias valiosas e que aproveitei todos momentos que tive com ela, nos altos e baixos, na saúde e na doença. afinal o que são a saudade e o luto senão a progressão natural do amor? e de repente meu mundo vira de cabeça pra baixo, a perspectiva muda de forma radical, quando percebo que pela primeira vez estou perdendo alguém que eu realmente amei - e que me amou também. todas as músicas que ouvia pensando em minhas paixonites que não me davam bola, ou meus "quase" relacionamentos que terminaram antes mesmo de começar - agora são todas sobre minha avó. o mundo acaba se tornando mais rico de alguma forma, tudo se torna mais sério, mais importante, mais simbólico.
a partir de agora eu também tenho que mudar, ficar mais séria e importante, afinal não tenho mais meu travesseiro para me amparar. mas o luto tem sido um amparo, afinal o que eu sofri com a perda da minha avó coloca no chinelo todos meus sofrimentos anteriores. e da mesma maneira, sinto que nada mais será capaz de me ferir tão profundamente quanto isso. mas esse sempre foi o jeito da minha avó: aprender com a dor e com as dificuldades; até na sua morte ela me ajudou a crescer.
"vovó, você é meu travesseiro fofinho"